Na mesma semana em que comemora-se o Dia da mulher negra latino-americana e caribenha, completam-se 130 dias sem Marielle Franco: mulher, negra, LGBT, favelada e vereadora assassinada em Março de 2018. Em sua homenagem, o governo do estado do Rio decretou na última quarta (18) a lei 8.054/18, que estabelece o dia 14 de março como o Dia Marielle Franco – Dia de Luta contra o Genocídio da Mulher Negra.
De acordo com o Mapa da Violência de 2015, o Brasil é o 5° país que mais mata mulheres no mundo. Treze mulheres são assassinadas por dia. As mulheres negras estão em uma posição ainda mais arriscada: entre 2003 e 2013 os casos de assassinato de mulheres tiveram um aumento de 21% no Brasil, mas entre as mulheres negras o aumento foi de 54%. Ainda segundo o Mapa, 15% dos países com mais altas taxas de feminicídio se encontram na América Latina.
Diante de uma realidade que oprime e cala, as mulheres negras, latino-americanas e caribenhas resistem. Em 1992 elas organizam o primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas, em Santo Domingo, na República Dominicana, para discutir o machismo, o racismo e formas de combatê-los. Daí surge o dia 25 de julho como Dia internacional da mulher negra latino-americana e caribenha, como marco internacional das lutas, resistência e organização destas mulheres, reconhecido pela ONU e diversas outras instituições.
De acordo com a trabalhadora técnico-administrativa em educação e membro do Grupo de Trabalho Antirracismo do Sintufejuf, Eliane Silva de Sousa, o machismo é opressão de gênero, já o racismo é a opressão que envolve a questão racial. Neste sentido, a mulher negra é atingida pelas duas formas de opressão. “A gente tem sempre que lembrar que a mulher negra está na base da pirâmide social. Então, quando a gente analisa a pirâmide de opressões, a gente vê que em primeiro lugar está o homem branco, hétero, em segundo lugar a mulher branca, abaixo dela tem o homem negro e na base de tudo está a mulher negra, que vai sofrer o massacre com todos os tipos de opressão. Ela já sofre com o racismo em virtude da cor da pele, e quanto mais escuro o tom da pele, mais intensas são as formas com as quais ela vai sofrer o racismo, aliado a isto, tem o machismo, que desde o período da escravidão fez com que o corpo da mulher fosse objetificado” afirma.
Há muitas formas de expressão do machismo e do racismo, que incidem de formas diferentes sobre mulheres lésbicas, bissexuais, transsexuais, indígenas, negras, da periferia, da zona rural e de tantas outras localidades e vivências. E a opressão também dentro das instituições de poder do sistema. Nas eleições de 2016 somente 5% das pessoas eleitas para Câmaras de Vereadores eram mulheres negras. Marielle está nessa estatística.
Historicamente as mulheres têm se organizado para resistir à opressão através de movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos, coletivos e outras formas de organização. Uma dessas formas é a ocupação de cargos públicos, como de vereadora ou deputada. Marielle Franco, nascida e criada no Complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro (RJ), foi uma das mulheres negras que ousou ocupar o cargo de vereadora, com a bandeira de luta das mulheres negras e da população periférica carioca, questionando ao mundo: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”
“Eu sou porque nós somos”
Marielle Franco foi a quinta vereadora mais votada da Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 2016. Ano no qual foram eleitos 811 vereadores nas capitais brasileiras e somente 32 eram mulheres negras. Marielle, mãe aos 19 anos, conseguiu se formar em sociologia na PUC – RJ e ser mestre em administração pública pela UFF, após fazer um curso pré vestibular comunitário. Começou a se mobilizar ainda jovem na defesa dos direitos humanos e da população periférica. Em seu mestrado estudou as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s) do Rio de Janeiro e a violência policial. Acabou coordenando a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), ao lado do então deputado Marcelo Freixo (PSOL – Partido Socialismo e Liberdade).
No dia 14 de março de 2018 Marielle participou do evento “Jovens negras movendo as estruturas” (disponível na íntegra aqui), na Casa das Pretas, na Lapa (centro do Rio de Janeiro). Marielle encerrou sua fala no evento lembrando as palavras da escritora e feminista Audre Lorde: “Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”. E terminou dizendo “Vamo que vamo, vamo junto ocupar tudo”. Pouco depois, ainda no centro do Rio, um carro emparelhou com o veículo no qual Marielle estava. Ela e o motorista, Anderson Pedro Gomes, foram assassinados a tiros, e uma assessora teve ferimentos leves causados pelos estilhaços. Os criminosos fugiram sem levar nada.
No dia seguinte, avenidas de todas as cidades brasileiras foram tomadas por milhares de pessoas em manifestações de luto e luta pela morte de Marielle. Inúmeras faixas diziam: “Quiseram te enterrar, mas não sabiam que era semente”. Outras muitas diziam: “Quem matou Marielle? Quem mandou matar?”. Em Juiz de Fora cerca de 700 pessoas se reuniram em frente à Câmara Municipal para manter viva a memória e as lutas de Marielle.
Semanas antes de sua morte a vereadora assumiu a função de relatora da Comissão da Câmara de Vereadores do Rio criada para acompanhar a atuação das tropas da intervenção militar decretada pelo governo Temer no dia 16 de fevereiro de 2018. Dias antes de sua morte, Marielle havia denunciado em suas redes sociais o 41° Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Em suas palavras: “Precisamos gritar para que todos saibam o está acontecendo em Acari nesse momento. O 41° Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro está aterrorizando e violentando moradores de Acari. Nessa semana dois jovens foram mortos e jogados em um valão. Hoje a polícia andou pelas ruas ameaçando os moradores. Acontece desde sempre e com a intervenção ficou ainda pior.”
A principal hipótese levantada pela Polícia Civil é a de que a morte de Marielle foi encomendada por milicianos – grupos paramilitares formados por policiais, bombeiros, militares e agentes penitenciários. Marielle trabalhou, em 2008, na CPI das milícias, ao lado de Marcelo Freixo
Segundo Eliane Silva de Sousa, o assassinato da Marielle significa uma tentativa de silenciamento. A trabalhadora cita uma frase da filósofa norte-americana Angela Davis “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo”. Ao falar de Marielle, a técnico-administrativa lembra o mito da mulher negra raivosa, disposta a brigar e fazer barraco. “Para algumas pessoas, Marielle tinha esse estereótipo, mas na verdade, ela era mulher empoderada, sabia erguer a voz a favor daqueles que não são privilegiados. Quando a sociedade taxa uma mulher negra de raivosa, está querendo tirar dela a condição de reivindicar tudo aquilo que ela tem direito”, explica, Eliane. Para ela, as políticas de inclusão implementadas nos últimos anos e a campanha internacional da ONU de valorização das vidas negras “Década Internacional dos afro-descendentes”, a população negra começou a ocupar espaços que antes não eram possíveis, como nas universidades, alçando oportunidades em empregos melhores, e espaços de poder, como a Marielle ocupava. “O extermínio dela foi uma tentativa de silenciamento, uma forma de mostrar principalmente para a mulher negra: você tem que ocupar o lugar que é designado para você dentro da sociedade e continuar sendo a base da pirâmide social, se você ousar sair deste lugar, é este o destino que você vai ter”, opina.
130 dias sem Marielle Franco
Sem respostas sobre quem matou ou mandou matar Marielle Franco, grupos feministas de todo o Brasil se organizam para resistir e cobrar respostas. Em Juiz de Fora o fórum 8M, que reúne coletivos feministas, realizou um ato um mês após a morte de Marielle, exigindo justiça. Também realizou uma vigília no dia 22 de junho, para marcar os 100 dias sem Marielle. Um novo coletivo, que carrega o nome da vereadora, também surgiu: o Coletivo Marielle Franco, que reúne professoras, técnicas-administrativas em educação (TAEs) e alunas da UFJF, com o objetivo de romper com o silenciamento de violências, abusos e desigualdades de gênero, sobretudo cometidos no ambiente acadêmico. O GT de Mulheres do Sintufejuf participou das manifestações de luta e luto por Marielle na cidade e lançou nota a respeito.
No início do mês a performance “Eu me levanto”, da artista Paula Duarte, estampou o céu do bairro Santa Cândida, na zona leste de Juiz de Fora, com o rosto de Marielle Franco. Diversas pipas foram empinadas por crianças e adultos, marcando os 120 dias sem Marielle. A performance foi idealizada por Paula e contou com o apoio do Coletivo Descolônia e da MC Xuxu. Paula conta que o projeto nasceu de “uma tristeza enorme, inevitável e necessária”, mas que quer manter viva a memória de Marielle. “A pipa significa muito, principalmente para os jovens negros periféricos”, afirma a artista. A performance acontecerá novamente em setembro, no Corredor Cultural, realizado pela Prefeitura de Juiz de Fora.
Para Eliane Silva de Sousa, o principal legado deixado por Marielle é o trabalho que ela desenvolvia, enquanto mulher negra, de periferia, criada na favela, e que apesar de todas as dificuldades, conseguiu estudar e se destacar dentro da política, batalhando pela promoção social de pessoas negras. “Ela deixa também o legado de valorização. Ela tinha um trabalho muito intenso com a mulher negra não só na questão racial, mas também na luta de opressão e gênero. Mas o que ela deixou de maior, foi justamente a resistência contra o racismo e contra o machismo“, destaca Eliane, que defende a necessidade de continuar a luta para descobrir quem mandou matar a Marielle, e desta forma, valorizar a vida da mulher negra.
Quem matou Marielle?
Um levantamento realizado pelo Intercept Brasilmostra que as milícias cresceram muito no Rio de Janeiro, especialmente na capital. Das 6.475 ligações anônimas que o serviço de Disque Denúncia recebeu entre 2016 e 2017, quase 70% denunciavam milicianos, envolvendo diferentes crimes. São quase 2 mil denúncias de extorsão, mais de 200 denúncias de homicídios e 251 tentativas de homicídio. Em 2008, quando milicianos torturaram uma jornalista do Jornal O Dia, a questão chegou à mídia e a CPI das milícias, na qual Marielle e Freixo trabalharam, foi aberta. No final de seus trabalhos, a Comissão indiciou 226 pessoas. Uma série de matérias da Intercept Brasil mostra que várias das pessoas indiciadas pela CPI das milícias pode estar ligada ao assassinato de Marielle Franco.
Cristiano Girão Matias, ex-vereador indiciado pela CPI, foi preso em 2009 sob a acusação de chefiar uma milícia em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Em 2010 foi solto, mas teve seu mandato cassado, por excesso de faltas. Após anos sem aparecer na Câmara de Vereadores do Rio, localizada no centro da cidade, Cristiano Girão apareceu nas câmeras de segurança do prédio, no dia do assassinato de Marielle. No mesmo dia outros desafetos do vereador também foram assassinados – sua ex-mulher, Samantha Miranda, e seu marido, Marcelo Diotti da Mata. Poucas horas antes do assassinato de Marielle as câmeras de segurança do prédio também flagraram a presença de um ex-policial militar, indiciado na CPI das milícias, que visitou gabinetes de outros dois indiciados na CPI que ainda estão em atividade – dentre eles, Zico Bacana, atual vereador pelo PHS – Partido Humanista da Solidariedade.
Após a identificação do número de celular do motorista do carro envolvido no assassinato de Marielle, a Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro conseguiu a quebra do sigilo de outros aparelhos, inclusive de integrantes do Legislativo carioca, e um dos parlamentares chamados a depor foi Zico Bacana. Eu seu testemunho o vereador disse que não se lembrava da participação de Marielle na CPI das Milícias e que não mantinha muito contato com a vereadora.
A investigação está sob sigilo, porém a Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro já divulgou que em depoimentos de testemunhas o vereador Marcello Siciliano, do PHS, e o ex-PM Orlando de Oliveira Araújo, preso desde outubro passado por envolvimento em outros dois assassinatos, foram apontados como mandantes do assassinato de Marielle e Anderson. Ambos negaram envolvimento no crime, mas tem relações íntimas com as milícias cariocas.
Desde a morte de Marielle uma série de milicianos, ex policiais e políticos ligados às milícias foram assassinados no Rio de Janeiro, o que vem sendo caracterizado como “queima de arquivo”. Alguns suspeitos de assassinatos ligados à “queima de arquivo” chegaram a ser presos, porém a Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro não divulgou novas informações sobre o caso Marielle. A diretora executiva da Anistia Internacional, Jurema Werneck, em matéria publicada no site da ONG, afirmou que “a não solução do caso demonstra de forma incontestável a falta de compromisso do Estado brasileiro com seus defensores e defensoras de direitos humanos” e que “o sigilo e a confidencialidade, que tem como objetivo garantir a eficácia da investigação, não pode ser confundido com o silêncio das autoridades diante da obrigação de esclarecer corretamente a execução de Marielle”.
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